Redes sociais, uma ameaça à democracia

O modelo de negócios proprietário corrói as instituições democráticas. É hora de mudá-lo.
por Justin Rosenstein *
Em 2008, ajudei a criar o botão "Curtir" do Facebook. Queríamos incluir uma ferramenta que oferecesse às pessoas uma conexão mais humana. Mais de 10 anos depois, temos evidências contundentes de que as mídias sociais, ao priorizarem a simpatia em detrimento da verdade, tiveram consequências catastróficas e não intencionais. Nos Estados Unidos, uma eleição sem precedentes está a poucos dias de acontecer, tornando-se um referendo não apenas sobre a liderança política, mas também sobre a legitimidade da democracia. Como chegamos até aqui? Em grande parte, porque as mídias sociais degradaram relacionamentos reais, diminuíram a capacidade das pessoas de votar em eleições justas e livres e enfraqueceram a fé na democracia e em suas perspectivas futuras.
Isso não é fake news. Para milhões de pessoas que já sofreram as consequências, não é notícia. Vimos como as mídias sociais desestabilizaram eleições em todo o mundo. Testemunhamos como nossas conversas estão se polarizando. Testemunhamos o aumento da depressão e do cyberbullying e como eles estão mudando a vida de nossos filhos. Ouvimos os profissionais de mídia social mais experientes se manifestarem, inclusive eu.
O que não vimos? Uma mudança estrutural. As mídias sociais e seus algoritmos de recomendação de conteúdo são projetados para nos fazer prestar o máximo de atenção. Quanto mais absorvem nossa atenção, mais publicidade podem comprar e mais dinheiro ganham. Infelizmente, escândalos, acusações e mentiras descaradas vendem mais do que verdades e nuances. Como eu disse antes, priorizar o lucro em detrimento do bem público não é novidade. As pessoas cortam árvores porque elas valem mais dinheiro mortas do que vivas. As pessoas matam baleias porque elas valem mais dinheiro mortas do que vivas. E as mídias sociais nos prendem porque as pessoas valem mais dinheiro quando olham para telas do que quando saem e aproveitam a vida ao máximo.
Enquanto as empresas de tecnologia tiverem incentivos para buscar o lucro máximo, elas produzirão tecnologias que recompensam os acionistas às custas da sociedade. Pode parecer absurdo, mas elas têm uma obrigação fiduciária legalmente vinculativa de fazê-lo. Sem uma transformação drástica nos incentivos empresariais, as empresas de tecnologia continuarão a degradar e a colocar em risco o futuro da democracia.
Quando se trata de eleições, as empresas consistentemente culpam o conteúdo ruim e os usuários ruins. A desinformação e a manipulação já existiam muito antes do surgimento das mídias sociais, mas a estrutura das mídias sociais e seus algoritmos as favorecem, se beneficiam delas e permitem que se tornem virais. No Twitter, mentiras se espalham seis vezes mais rápido que a verdade. Em 2016, o Facebook reconheceu que 64% do crescimento de grupos extremistas se deveu ao seu próprio algoritmo de recomendação. Um estudo de 2020 descobriu que a desinformação no Facebook é três vezes mais popular do que na última eleição presidencial dos EUA. Ambos os candidatos dedicaram parte de seu dinheiro a anúncios em mídias sociais. Biden inundou o Facebook durante o verão. Trump reservou espaços na página inicial do YouTube para o início de novembro. Desde junho, os dois gastaram US$ 100 milhões em anúncios no Instagram e no Facebook juntos.
No entanto, os algoritmos e incentivos das mídias sociais fazem com que o que viraliza não seja conteúdo eleitoral legítimo. São mentiras, medo, teorias da conspiração fabricadas e ameaças de violência. O resultado é o medo de agitação social no dia da eleição e nos dias seguintes. As tentativas do Twitter e do Facebook de rotular as mensagens mais absurdamente falsas e perigosas ficam para trás das implacáveis campanhas de desinformação que estão minando a fé na democracia.
Sei que as mídias sociais nunca tiveram a intenção de se tornar veículos de propaganda política perigosa. Mas elas não fizeram as mudanças estruturais profundas necessárias, e nós, o povo, estamos pagando o preço. Apesar do que essas empresas querem nos fazer acreditar, a solução não é contratar mais moderadores ou ser mais eficiente em desmascarar desinformação. Essas coisas não passam de curativos. O sistema está quebrado. Para que as coisas mudem, precisamos transformar a estrutura de governança corporativa das empresas. A solução para salvar nossa democracia é aplicar os princípios democráticos a elas.
Imagine, por exemplo, se o Facebook prestasse contas a um Conselho Popular em vez de um conselho de administração. Esse Conselho Popular, composto por acionistas de vários setores, decidiria os objetivos gerais da empresa, quais critérios são importantes e quando contratar um novo CEO. Em vez de definir o sucesso com base em critérios econômicos, o conselho poderia exigir maior consideração de parâmetros que fortaleçam as instituições democráticas e a vida individual. Nas últimas décadas, muitos países usaram esses processos democráticos avançados para capacitar os cidadãos a mudar as coisas. Em 2015 e 2018, a Irlanda aprovou emendas à sua Constituição sob a orientação de uma Assembleia de Cidadãos, uma amostra representativa da população que trabalha por meio de colaboração estruturada e processos guiados. Em 2020, Taiwan administrou seu surto de COVID-19 usando ferramentas de democracia digital que construíram confiança e participação.
Parece utópico? É, comparado ao que temos agora. Mas é possível. Talvez as empresas decidam mudar, mas não podemos esperar que o façam. É vital que os usuários das redes sociais, os políticos e os governos, bem como os próprios funcionários das empresas, exerçam pressão pública. E essa pressão começa com todos se conscientizando dos danos que as redes sociais estão causando às nossas famílias e às nossas instituições. Ela se intensifica quando as pessoas se recusam a aceitar o status quo e exigem mudanças para o bem de todos. E triunfa quando tomamos medidas coletivas: quando nós, as pessoas, mudamos a forma como usamos as redes sociais e exigimos que os formuladores de políticas também mudem as suas.
Este trabalho já começou. Governos e políticos aumentaram a pressão sobre as plataformas de mídia social, inclusive com novas medidas antitruste e de transparência pública. Dentro das empresas, os funcionários começaram a entrar em greve e se opor a políticas, ações e ferramentas que são inconsistentes com o bem comum ou a ética coletiva. "O Dilema das Redes" foi o filme mais assistido na Netflix em setembro, um feito sem precedentes para um documentário. Milhões de pessoas assistiram e compartilharam os efeitos negativos que as mídias sociais tiveram em suas vidas.
Vimos o poder da pressão pública em movimentos sociais recentes, como o chamado #EndSARS na Nigéria e a reforma policial nos Estados Unidos, bem como nas mudanças promovidas pelo movimento #MeToo. Quanto mais pressão as empresas recebem de usuários, órgãos reguladores e funcionários, mais poder temos para impor mudanças reais. Nos Estados Unidos, começamos a votar em eleições onde os riscos são mais altos do que nunca e onde a fé na democracia é excepcionalmente baixa. Se as mídias sociais dominam nossa esfera pública, devemos garantir que os princípios democráticos superem os lucros. Nós, o povo, temos o direito de governar as instituições que moldam nossas vidas. É disso que se trata viver em uma democracia.
* Justin Rosenstein é o fundador do One Project, uma iniciativa para promover a democracia diante dos desafios da era da internet, e um dos temas do documentário "O Dilema da Rede". Anteriormente, ele ajudou a desenvolver ferramentas como o Google Drive e o botão Curtir do Facebook.
El País Espanha
Tradução de María Luisa Rodríguez Tapia